quarta-feira, 28 de maio de 2014

O dia D #3

(Primeira parte: aqui; segunda parte: aqui)

À medida que vou crescendo vou aprendendo que as certezas são realmente absolutas e imutáveis... mas apenas no exato momento em que surgem. Aprendi a admitir que (pelo menos as minhas certezas) têm muitas vezes a eterna duração de um instante. Sim, voltando ao tema do parto, eu tinha a certeza que queria que este fosse o mais natural e espontâneo possível, com o mínimo de intervenção da medicina. Tinha a certeza que queria que fosse a minha filha a escolher a data, e não eu ou algum médico. Tinha a certeza que iria portar-me bem durante o parto e que aguentaria bem todas as dores ou stresses, pois não tinha qualquer tipo de medo ou ansiedade - estar mais calma era praticamente impossível. Tinha a certeza que o momento em que visse a minha filha seria o momento mais especial da minha vida e conseguiria saboreá-lo, tal como consegui saborar o dia do meu casamento. Eu tinha também a certeza que ser mãe seria instintivo para mim, tal como dar de mamar, acalmar os choros da minha filha, pô-la a dormir ou conciliar o ser mãe com a minha vida amorosa e social. Tinha ainda a certeza que, logo após o parto, o meu corpo iria voltar ao normal num ou dois dias, pois tinha praticado desporto e tinha-me mantido muito ativa até praticamente o momento do parto. Sim, toda eu eram certezas. Só não sabia é que toda eu eram certezas tão eternas como a eternidade dum piscar de olhos.

Retomemos então do ponto em que ficámos no último post. A magia do dia? Sim, tinha decidido que em circunstância alguma provocaria o parto. Parecia-me contra natura, pouco romântico. "Provocar nunca, quem decide é a minha filha!" Mas o que fazer quando trabalhamos longe de casa e corremos o risco de entrar em trabalho de parto longe de tudo e de todos? O que fazer quando o médico em quem confiamos nos diz que, se o queremos 100% disponível, aquele dia seria o melhor? O que fazer quando até estamos apenas a 2 dias do tempo de parto completo e da data em que fazemos 40 semanas? Eu queria magia, sim. Queria surpresa. Queria muito romantismo. Queria acordar um dia a meio da noite, sentir que as águas tinham rebentado, como acontece sempre nos filmes, virar-me para o lado, chamá-lo baixinho e dizer "é agora!". Mas, como disse, estava a 2 dias de fazer as 40 semanas e nada disso tinha ainda acontecido. Assim, perante a inevitável pergunta, decidi pegar nas rédeas da gravidez da única maneira possível, e responder a mim mesma, entredentes: "vamos a isto". Além disso, pensando bem: haverá algo mais romântico que uma mãe que já não aguenta mais um dia de existência sem conhecer a filha?... Eu já não aguentava nem mais um dia sem poder abraçar a minha filha, precisava de a ver, precisava de a ter cá fora comigo, precisava de senti-la real.
- Vamos a isto, respondi, agora bem alto.
- Muito bem. De qualquer maneira, não sabemos como é que o teu corpo vai reagir. Pode ser rápido, mas pode durar muitas horas e podemos ficar aqui até amanhã... Isto acelera o processo, mas cada corpo reage de forma diferente.

Enquanto me encaminhava para as enfermeiras, peguei no telemóvel e liguei-lhe logo (apesar de estar apenas a metros de mim, à espera no hall de entrada de obstetrícia).
- Vão por-me ocitocina no soro. Vai começar tudo. Agora é ver como é que o corpo reage, pode ser rápido ou não. Está quase. Está quase... Vamos conhecê-la.
Do outro lado, a voz que denunciava a mesma alegria que do meu lado. A enfermeira levou-me então até um quarto. Pediu-me as malas para guardar num cacifo e a primeira roupa da bebé para preparar. Percebi que ia tudo tornar-se finalmente real. Dei-lhe as roupinhas, não sem antes confirmar se a quantidade de peças seria a adequada (body interior, calças interiores, babygrow, gorro - a enfermeira quis ainda acrescentar meias e um casaco). Levou tudo para um canto do quarto e começou a preparar a primeira toilette da bebé. Foi então que reparei que, nesse canto, havia uma balanca, estetoscópio, réguas e diverso material clínico que não soube identificar. Ao lado, um pequeno lavatório. Em cima da cama (que calculei que fosse para mim), toda uma diversidade de tubos e máquinas. Não resisti a perguntar, apesar de já antever a resposta:
- Desculpe... O parto faz-se no bloco operatório, não é?
- Não, querida. O parto faz-se aqui.
Aí, sim, admito que senti finalmente um friozinho no estômago...
- A seguir peço-lhe que vista a camisa de dormir e se deite, porque vou por-lhe o soro, ok?
Obedeci. O friozinho ia aumentando. Preparou o soro.
- Já puseram ocitocina?, perguntei-lhe.
- Já. Agora é esperar... Se quiser acelerar o processo pode ir passeando no corredor, desde que leve o soro atrás. Também temos uma bola de pilates, se quiser fazer exercício. Quando tiver dores, carregue neste botão, por favor.

Peguei no soro, fui à socapa ter ao hall de entrada chamá-lo e fomos os dois passear corredor fora, sem saber muito bem o que esperar. Lá fora, o sol ia ainda alto, bem alto. Cerca de duas horas depois, sem desenvolvimentos, pedi a bola de pilates à enfermeira e pus-me a inventar todo o tipo de exercícios, enquanto ele gritava "cuidado!!". (Confesso que na altura não percebi por que estava tão preocupado comigo - eu estava a exercitar-me em cima da bola de pilates a protagonizar momentos de extrema delicadeza, elegância e equilíbrio. Só a ver as fotografias mais tarde percebi que a extrema delicadeza era afinal a delicadeza de um elefante em cima duma pequena bola. Eu estava gravidíssima!!) Nesse momento ainda estávamos oficialmente divertidos, a tirar fotografias a tudo, e a conversar animadamente sobre tudo e mais alguma coisa. No entanto, aos poucos, eu começava a ficar um pouco irritada por não sentir grandes contrações. De vez em quando, alguma enfermeira ou médico ia ao corredor chamar-me para me ir deitar na cama, medir as contrações e fazer novo toque (sim, eu avisei que iam sentir-se "Os Maias"!!). Nada de relevante, pelo menos para mim. Para as enfermeiras, no entanto, eu estava a ser uma heroína:
- Tem grande resistência à dor, não tem? É notável.
- Não... Na realidade ainda não senti dores nenhumas.
- Pois, por isso mesmo. Já era suposto ter imensas dores e estar a queixar-se.
As enfermeiras saíram, deixando-o admirado a olhar para mim.
- Ouviste? Estás a portar-se maravilhosamente bem. "Grande resistência à dor", foi o que disseram.
- Oh... cala-te. Não tenho nada resistência à dor. Resistência à dor é ter dor e aguentá-la. Eu ainda não tenho dor nenhuma para aguentar. Nada. Acredita em mim. [o final do dia viria a dar-me razão]

E assim tudo continuou, entre passeios, exercícios na bola de pilates, medição de contrações e toques. Lá fora, o sol ia descendo, lentamente, no horizonte. A dada altura, os quatro futuros-avós lembraram-se que eram muito católicos, e que o dia treze de maio era o dia mais especial da história da humanidade, por mil e um motivos, e concluíram em uníssono que adoravam que a neta nascesse no dia treze de maio, isto é, depois da meia-noite. Começaram a congeminar juntos ao ponto de me ligarem e ficarem contentes quando eu dizia que ainda não havia novidades. Comecei a ficar preocupada que, com tanta religiosidade e congeminação coletiva, o dia se prolongasse horas e horas e que fossem feitas as suas vontades. Só que, de repente, algo aconteceu (por sorte estava deitada): comecei a sentir-me molhada.
- Acho que as águas rebentaram!!
Finalmente... Podia ser do raio da ocitocina que me estava a entrar nas veias, podia ser a minha bebé finalmente a querer nascer, mas o que era certo é que tanto tinha sonhado com aquele momento e estava a vivê-lo: a rutura da bolsa. Chamámos as enfermeiras, que ajudaram a limpar tudo. Depois, mais uma médica nova analisar a dilatação.
- Já está quase...
A frase mais ouvida nesse dia - "já está quase". A médica saiu e ficámos os dois no quarto, a olhar um para o outro, cada vez mais ansiosos. Até que ele teve uma ideia para me (nos?) ajudar a descontrair. E não, não me fez massagens. Não trouxe uma guitarra e começou a cantar para mim. Não pegou num livro de poemas e começou a recitar. Não trouxe velas com aroma a baunilha. Nem me fez um chá de camomila. Bem mais simples que isso:
- É segunda-feira. E se víssemos o novo episódio da Guerra dos Tronos? Já está disponível na internet.

Assim, quando, minutos depois, senti a primeira contração a sério - "aiiii meu Deus!!!" -, e quando finalmente toquei no tal botão "das dores", meia contorcida, as enfermeiras entraram a correr no quarto e depararam-se talvez com um cenário improvável: encontraram, não uma grávida sozinha aos gritos agarrada aos lençóis, mas um casal de ipad na mão, às escuras, a assistir compenetrado a duelos medievais.

(Continua...)

11 comentários:

  1. Pippa és a maior! Toda esta descrição está maravilhosa! É comovente, hilariante, com suspense... tudo o que as melhores histórias têm! :) Game of Thrones! Muito muito bom! :D Muitos parabéns pela tua menina!

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  2. Anónimo21:43

    Pippa que descrição fantástica!!!
    E que grande ansiedade para ler sempre 'o próximo episódio'!!
    Mas também apetece que nunca mais acabe :)
    Tá muito muito bom!!!
    Obrigado por partilhares!!

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  3. ehehe, espero qeu não demores uma semana dar-nos novo episódio :)
    Adoro relatos de parto :)

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  4. Pippa, estou a amar os teus relatos :D adoro a forma como consegues contar esta história de forma tão emocionante, tão divertida e a deixar-nos super empolgados à espera da continuação! Estou a pensar começar a planear o nosso bebé (não sei se te apercebeste desta sequência de verbos... :P que significa que quero muito dar esse passo mas que o coração dispara no peito quando penso nisso...) e sem dúvida que acompanhar as tuas peripécias são muito esclarecedoras. Porque é que ninguém fala destas coisas assim tão naturalmente?

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  5. Bárbara15:41

    RRRRRRRRRRRRRRRRRRR que "nerbos"!!! Não demore muito com a conclusão! Estou, ou melhor, estamos ansiosos para saber o final, em que dia nasceu a Constança!!!

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  6. Anónimo17:42

    Que relatos deliciosos!
    Não há como sorrir perante esta escrita :)
    Paula M

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  7. Primeiro que tudo (creio que ainda não o fiz) Parabéns pela princesinha!
    Estou a adorar ler esta descrição, o que já me ri com isto e deixa-me que te diga, essa visão da Guerra dos tronos era algo que facilmente veria aqui em casa a acontecer em circunstância semelhante. Fico há espera de novos episódios ;)

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  8. Parabéns pela descrição. Adorei!!

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  9. Isto esta perto de se tornar um romance. podias escrever um livro, eu ja aqui estou aflita para ler o proximo capitulo :D Parabens pipa, que tudo na tua vida seja sempre assim**

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  10. Pippa tive de vir cá depois do episódio de ontem do GoT... ainda bem que não foi este que viste na altura! :p

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  11. Carolina16:13

    E a conclusão deste????????????????????????????

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