Lia ontem no Público (
aqui) uma crónica a criticar duramente o típico final feliz de tantas e tantas histórias que crescemos a ouvir: o
"viveram felizes para sempre". E essas histórias são-nos contadas, e acordo com o autor, pelos poetas, escritores, argumentistas, realizadores, pelos contos de fadas, pelas escolas e até pela televisão.
"A cultura ocidental está cravejada de uma mitologia romântica que nunca passou o teste da realidade. Esta é uma ideia, uma mentira ensinada às criancinhas (e também aos adultos), que se torna como que um mantra que, de tanto se repetir, acabaria por se concretizar." Mais
: "a criação de falsas expectativas nas pessoas é um factor destrutivo de felicidade", afirma-se a dada altura.
E estas duas últimas frases deixaram-me a pensar que, de facto, crescemos a acreditar que, depois do primeiro beijo, depois do momento em que ambos confessam a paixão avassaladora que os une, surge o momento de felicidade a dois eterna. Como se o ser feliz a dois fosse tão simples como respirar. Como se os problemas apenas acontecessem na vida real, no nosso quotidiano cinzento e enfadonho em contraste com o cenário que vemos nos filmes. Como se o mal estivesse em nós, que não conseguimos ser perfeitos,
glamourosos, apaixonados todos os dias. Como se o mal estivesse em nós, que por vezes acordamos mal-dispostos, respondemos torto, temos dores de cabeça ou simplesmente queremos ficar um dia por casa, mal vestidos e sem qualquer
glamour, sem beijos apaixonados de cinco em cinco minutos ou passeios ao pôr-do-sol, com juras de amor. No dia a dia, fala-se de compras para casa, das contas do gás e da luz, fala-se do trabalho, fala-se do que se vai fazer para o jantar, discute-se, responde-se torto...
não há lugar ao estado constante de felicidade avassaladora que crescemos a acreditar que existe.
"A paixão é um mecanismo biológico que (...) visou criar laços temporários entre um homem e uma mulher para que a procriação e os cuidados pós-natais fossem possíveis. (...) Os neurologistas que estudam a paixão já demonstraram como a paixão se exaure ao fim de dois anos, até porque o corpo não mais aguentaria". Pelo que os psicólogos aconselham, alegadamente, a não casarmos com alguém por quem estamos apaixonados, porque esse estado de espírito tolda-nos a clareza de pensamentos ou decisões. O ideal será, portanto, deixar decorrer esse período de dois anos para podermos olhar para a pessoa que está do nosso lado com objectividade e, dessa forma, avaliarmos melhor as suas qualidades e defeitos.
Não sou nenhuma perita em relacionamentos, mas quer-me parecer que esta é uma visão demasiado pessimista das relações reais, longe dos filmes. É uma visão que parte demasiado do ponto de vista científico e a menos do ponto de vista empírico: nas relações reais, a paixão é, por norma, algo que se pode ir alimentando, se as partes estiverem dispostas a isso. Concordo que o dia a dia pode ser complicado e que em nada se compara com o simples
"viveram felizes para sempre" que nos ensinaram. No entanto, prefiro acreditar que o estado de paixão se encontra dependente de ambas as partes, e que pode surgir quer seja no primeiro mês, quer seja no vigésimo quinto. E se, no início, é mais natural que se perca o sono, a fome, e se viva só para aquela pessoa, a calma que se vive depois da novidade também pode ser benéfica: há tempo para namorar sem ansiedade ou sem arritmias cardíacas, há tempo para viver o amor de forma mais "tântrica". Prefiro acreditar que a paixão vai aparecendo em qualquer relação, independentemente de todos os restantes sentimento envolvidos - amizade, partilha, companheirismo, admiração - desde que o casal a alimente (e deve alimentar sempre). Prefiro acreditar que a paixão existe sem um prazo de validade, que existe num jantar fora, num vestido mais justo, numa pele mais bronzeada, num beijo especial, num abraço ou num olhar. Prefiro acreditar que a paixão existe quando o casal quiser. E que, mesmo que o nosso quotidiano não seja igual ao dos filmes, e possa parecer cinzento e enfadonho, cabe-nos a nós lutar pelo nosso "final feliz" constante.