sexta-feira, 12 de abril de 2013

Sabia tudo de cor.

- Gostas da empregada? Trata-te bem?
- Mais ou menos. Às vezes chega com um saco cheio de perguntas...
- Perguntas..?
- Sim. Traz o saco de perguntas, pousa-o e depois esquece-se de as levar. Deixa as perguntas ali pousadas. E esquecidas.
- Hãaa?
Às vezes sentia que as pessoas estavam lentas demais e tinham deixado de acompanhar o raciocínio dela.

- Guardas-me este dinheiro na tua carteira, por favor? Tenho medo que me roubem.
- Dinheiro? Isto são extractos bancários...
- Não são, não... Dá cá, eu guardo, pronto.
A neta era nova, ainda não sabia reconhecer cheques. Mais valia guardá-los ela própria e não estar a explicar tudo em público, ainda atraía a atenção de alguém mal intencionado...

- Está um óptimo dia hoje, não está, mãe?
- Está! Que calor. Parece o casamento da Maria, a semana passada.
- Casamento? Foi o aniversário.
- Sim, foi o que eu disse - aniversário. Ela fez anos.
Devia estar cansada, a filha. Trabalhava tanto. Trabalhava tanto que começava a trocar as palavras.

- Mãe, pegou nos meus anéis.
- São meus, filha. Queres que te empreste?
- Não, são meus...
A filha devia andar cansada. Além disso, se queria aqueles anéis, bastava pedir! Era simples. Tirou os anéis dos seus dedos e emprestou-lhe. Se a filha queria usar, que usasse. De seguida, foi descansar um pouco. Andava farta. Tão farta... Farta que a percebessem mal. Farta de ter que repetir tudo. Farta que questionassem tudo. Não a ouviam? Nos últimos tempos, parecia que tinha mergulhado num pesadelo e não conseguia acordar. Estava farta daquelas expressões de confusão que faziam ao observá-la. De andar de filho em filho. Cama em cama. Médico em médico. Exame em exame. Diagnóstico em diagnóstico. Ela estava bem! Não viam isso? A cabeça era a mesma. O corpo igual. Tinha 82 anos? Era só uma idade, um número. Por dentro sentia-se ainda com 9 anos, a pedir à mãe que a deixasse fazer a 4a classe. Era tão boa aluna. Sabia os reis de cor. E os rios. Os afluentes. E até as estações dos caminhos de ferro. Sabia a tabuada. Era tão boa aluna. Não viam isso? A cabeça estava fresca e jovem. Não viam isso?

Tinha que acordar daquele pesadelo horrível. Ela estava bem. Alzheimer? Que palavra era essa? Era tão boa aluna. Sabia os reis. E os rios. Afluentes. Estações. E a tabuada. Modernices... Estrangeirismo, era o que aquela palavra devia ser. Só queria acordar. Estava tão bem. Os outros é que andavam cansados. Trabalhavam tanto...

8 comentários:

  1. Anabela10:12

    Deve ser tão triste e revoltante.. Está escrito de uma forma muito bonita e real.

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  2. É esta maravilha das palavras fazerem sentir, sentir ao ponto de chorar ou rir à gargalhada....mas fazer sentir sempre! É por isso que gosto tanto!

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  3. Uma doença muito complicada para todos os que convivem com ela :(

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  4. Tive de ler duas vezes, porque não percebi tudo à primeira. Se calhar, é do cansaço.

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  5. Sabes...sou enfermeiro. Lido com isto todos os dias... Fiquei estasiado por veres o alzheimer exatamente como ele é.
    Parabéns...do fundo do coração...
    Fiquei...emocional... :)
    Tendo em conta que frequento montes de blogs de saúde, de bom grado te digo, foi o melhor texto de saúde que li e tem o seu valor que ainda torna mais especial o facto de não ser um blog dedicado a saúde.
    Depois disto tudo, só basta dizer...obrigado!

    D.

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  6. Alzehmeir, na realidade qualquer demência, assusta-me muito!

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  7. Este texto é maravilhoso!

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